segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Miura - Miguel Torga

Miura
Fez um esforço. Embora ardesse num formigueiro de desespero fez um esforço e mediu com quanta calma pôde a situação
Estava, pois, encurralado, entre quatro paredes, sem poder dar um passo, à espera de que lhe chegasse a vez! Um ser livre da lezíria, um toiro nado e criado na planície sem fim do Ribatejo, de gaiola como um passarinho, condenado a divertir a multidão!
Contra sua vontade, uma onda de calor tapou-lhe o entendimento por um segundo. O corpo, inchado de raiva, empurrou as paredes como um Sansão.
Nada. Os muros eram resistentes, à prova de quanta força e quanta justa indignação pudesse haver. Os homens, só assim: ou montados em cavalos velozes e defendidos por arame farpado, ou com paredes de cimento armado entre eles e a razão dos mais...
Palmas e música lá fora. O Malhado dava gozo às senhorias...
Nova agitação funda o estremeceu inteiro. Dali a nada, ele. Ele, Miura, o rei da campina!
A multidão calou-se. Começou a ouvir-se, sedante, nostálgico, o som grosso e pacífico das chocas.
A planície!... A infinita e mansa planície, loira de sol e trigo... O lago sem fundo de luar, com bocas mudas, limpas, a ruminar o tempo… A fornalha escaldante, sedenta, desesperante, com cega-regas ásperas como praganas…
Novamente o silêncio. Depois, ao lado, passos incertos de quem entra vencido e humilhado no primeiro buraco...
Outra vez o silêncio. O silêncio fundo, pesado, de desgraça que ainda não acabou.
A planície...
Um som fino de corneta.
Estremeceu. Seria agora? Teria chegado, enfim, a sua vez?
Não chegara. A porta que se abriu não foi a sua, e o rugido de desespero que se ouviu a seguir era do Bronco.
Sem querer, cresceu outra vez todo para as paredes estreitas do curro. Mas a indignação e os músculos deram em pedra fria.
A planície... O bebedoiro da Terra-Velha, fresco, com água limpa a espelhar os olhos...
Assobios.
O Bronco não fazia bem o papel...
Um toque estranho, triste, calou a praça e rarefez o curro.
Rápida e vaga, a sombra do companheiro passou-lhe pela vista turva. Apertou-se-lhe o coração. Que seria?
Palmas, música, gritos.
Um largo espaço assim, com o mundo inteiro a vibrar para além daquelas paredes. Algum empo depois, novamente o silêncio e novamente as notas lúgubres do clarim.
Todo inteiro a escutar o dobre a finados, abrasado de não sabia que lume, Miura tentava em vão encontrar no instinto confuso o destino do amigo.
Subitamente, abriu-se-lhe sobre o dorso um alçapão, e uma ferroada fina, funda, entrou-lhe na carne viva. Cerrou os dentes de dor e cresceu quanto pôde.
Desgraçadamente, não podia nada. O senhor homem sabia bem quando e como as fazia. Mas por que razão o espetava daquela maneira?
Três pancadas secas na porta, um rumor de tranca que cede, uma fresta que se alargou, eram-lhe num relance a explicação do enigma da agressão: chegara a sua vez.
Nova ferroada no lombo.
- Miura! Cornudo!
Dum salto todo muscular, quase de voo, estava na arena.
Pronto!
A tremer como varas verdes, de cólera e de angústia, olhou à volta. Um muro e, para lá dele, gente, gente, sem acabar.
Com a pata nervosa escarvou a areia do chão. Um calor de bosta macia correu-lhe pelo rego do servidoiro. Urinou sem querer.
Gritos da multidão.
Que papel ia representar? Que se pedia do seu ódio?
Hesitante, um homem magro, doirado, entrou no redondel.
Olhou-o a frio. Que força traria no corpo mirrado, nas mãos amarelas, para se atrever assim a transpor a barreira?
A figura franzina avançou.
Admirado, Miura olhava aquela fragilidade de dois pés. Olhava-a sem pestanejar, olímpica e ansiosamente.
Com ar de quem joga a vida, o manequim de lantejoulas caminhava sempre. E, quando Miura o tinha já à distância dum arranco, e ainda sem compreender olhava um tal heroísmo, enfatuadamente o outro bateu o pé direito no chão e gritou:
- Eh! boi! Eh! toiro!
A multidão dava palmas.
- Eh! boi! Eh! toiro!
Tinha de ser. Já que desejavam tão ardentemente o fruto da sua fúria, ei-lo.
Mas o homem que visou, que atacou de frente, cheio de lealdade, inesperadamente transfigurou-se na confusão de uma nuvem vermelha, onde o ímpeto das hastes aguçadas se quebrou desiludido.
Cego daquele ludíbrio, tornou a avançar. E foi uma torrente de energia ofendida que se pôs em movimento.
Infelizmente, o fantasma, que aparecia e desaparecia no mesmo instante, escondera-se covardemente de novo por detrás da mancha atordoadora. Os cornos ávidos, angustiados, deram em cor.
Mais palmas da multidão.
Parou. Assim nada o poderia salvar. À suprema humilhação de estar ali, juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras. Não. Era preciso ver calmamente. Era necessário que a sua raiva fosse ao menos de encontro a uma das causas dela.
O espectro doirado lá estava sempre. Pequenino, com ar de troça, olhava-o como um brinquedo com que já brincara.
Silêncio.
Esperou. O homem ia desafiá-lo certamente outra vez.
Assim era. Inteiramente confiado, senhor de si, veio vindo, veio vindo, até lhe não poder sair mais do domínio dos chifres.
Agora!
De novo, porém, a nuvem vermelha apareceu. E de novo Miura gastou nela a explosão da sua dor.
Palmas, gritos.
Desesperado, tornou a escarvar o chão, agora com as patas e com os  galhos. O homem!
Mas o inimigo não desistia. Talvez para exaltar a própria vaidade, aparentava dar-lhe mais oportunidades. Lá vinha todo empertigado,  com dois pequenos paus apontados, e a gritar como há pouco:
- Eh! toiro! Eh boi!
Sem lhe dar tempo, com quanta alma pôde, lançou-se sobre o adversário, disposto a tudo. Não trouxesse ele a nuvem vermelha e veríamos!
Não trazia. E, por isso, quando se encontraram e o outro lhe pregou cachaço, fundas, dolorosas, as duas farpas que trazia nas mãos, tinha-lhe o corno direito enterrado na fundura da barriga mole.
Gritos. Novamente a nuvem vermelha.
Passada a bruma que se lhe fez nos olhos, relanceou a vista pela praça toda. Então?!
Como não recebeu qualquer resposta, desceu solitário à terra do seu martírio. Lá levavam o moribundo em braços, e lá saltava na arena outro farsante doirado.
Esperou. Se vinha sem o pano vermelho, sem a mágica força que o cegava e lhe perturbava o entendimento, morria.
Mas o outro trazia a nuvem.
Apesar disso, avançou. Avançou e bateu, como sempre, em algodão.
Voltou à carga.
O corpo fino do toureiro, porém, fugia-lhe demoniacamente.
Protestos da multidão.
Avançou de novo. Os olhos já lhe doíam e a cabeça já lhe andava à roda.
Humilhado, com o sangue a ferver-lhe nas veias, escarvou a areia mais uma vez, urinou e roncou, num desespero sem limites. Miura, joguete nas mãos dum zé-ninguém!
Num relâmpago, sem dar tempo ao farsante, caiu sobre ele. Mas quê! Como um gamo, o miserável saltava o muro.
Desesperado, espetou os chifres na tábua dura, em direcção à barriga do inimigo, que se ria do outro lado. Sangue e suor corriam-lhe pelo lombo abaixo. Que sorte!
Ouviu uma voz que o chamava. Quem seria? Voltou-se. Mas era um novo palhaço, que trazia também a nuvem, agora pequena e triangular.
Mesmo assim, quase sem tino e a saber que era em vão que avançava, avançou.
Deu, como sempre em fofo.
Renovou a investida. Em fofo, outra vez.
Parou. Mas então não poderia ter fim aquele inferno? Não poderia acabar a sua miséria?
Num último esforço, avançou quatro vezes. Nada. Apenas palmas ao actor.
Onde? Onde estaria o fim daquilo?
Subitamente, o adversário estendeu-lhe diante dos olhos raiados o brilho frio dum estoque.
Quê?! Pois poderia morrer ali, no próprio sítio da sua humilhação?! Os homens tinham dessas generosidades?!
Calada, a lâmina oferecia-se inteira.
Calmamente, num domínio perfeito de si, Miura fitou-a bem. Depois, fechou os olhos e, submisso, entregou o pescoço vencido ao alívio daquele gume.


Torga, Miguel, Os Bichos, 5ª edição, Livraria Figueirinhas, Coimbra 1954

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