Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 — Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.
Vila
Nova, 15 de Julho de 1936 — Um parto. A injecções, a ferros, a
gritos e a lágrimas da
povoação inteira, mas um parto.
Um bicho de pernas
gordas e olhinho azul. O senhor Newton.
O pai, ninguém sabe
porquê, mal o agarrou cá fora, que se havia de chamar Newton. Queria
Newton.
E o Conservador do
Registo — uma fera de erudição — achou que o pai exagerava.
Newton! Logo Newton!!! Mas eu disse que sim senhor. Newton,que tinha lá?!
De enxada na mão, é
quase certo que o novo homem não vai descobrir outra lei da
gravitação universal. Mas vai de certeza descobrir o sofrimento, e isso, cá no meu entender, chega.
Vila
Nova, 7 de Outubro de 1936 — Aqui na minha frente a folha branca do papel, à espera;
dentro de mim esta angústia, à espera: e nada escrevo. A vida não é para se
escrever. A vida — esta intimidade profunda, este ser sem remédio, esta
noite de pesadelo que nem se chega a saber ao certo porque foi assim — é para se viver, não é para se fazer dela
literatura.
Miguel Torga, Excertos de Diário, volumes I a IV.
S. Martinho de Anta, 22 de Março de 1978 — A feira. O espelho local onde se
reflecte a perdição do mundo. Acabou o artesanato, a expressão singular da
actividade humana. Nem um barro modelado, nem uma manta tecida à mão,
nem um ferro forjado. Plástico a todos os níveis. E o mais trágico é que
ninguém dá por isso. Ninguém parece lembrar-se sequer do latoeiro, do
cesteiro ou do tanoeiro, que ainda há pouco eram presenças sacramentais nos
pontos privilegiados do largo, à frente do mostruário das suas obras
manufacturadas. Montes e montes de produtos incaracterísticos, feitos em série,
enfartam agora os compradores. Nem escolha possível, nem gosto
possível, nem objecção possível.
— Não é
sola...
— Faz
as vezes...
O tempo
é outro, as solicitações são outras, as mentalidades são outras. Até a
angústia mudou, pois que mudou a relação do homem com as coisas.
Um risco abstracto basta agora à exactidão do
nosso perfil.
Miguel Torga, Excertos de Diário, volumes XIII a XVI
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