segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Miguel Torga - Diário

Vila Nova, 3 de Dezembro de 1935 — Morreu Fernando Pessoa. Mal acabei de ler a notícia no jornal, fechei a porta do consultório e meti-me pelos montes a cabo. Fui chorar com os pinheiros e com as fragas a morte do nosso maior poeta de hoje, que Portugal viu passar num caixão para a eternidade sem ao menos perguntar quem era.

Vila Nova, 15 de Julho de 1936 — Um parto. A injecções, a ferros, a gritos e a lágrimas da povoação inteira, mas um parto.
Um bicho de pernas gordas e olhinho azul. O senhor Newton.
O pai, ninguém sabe porquê, mal o agarrou cá fora, que se havia de chamar Newton. Queria Newton.
E o Conservador do Registo — uma fera de erudição — achou que o pai exagerava. Newton! Logo Newton!!! Mas eu disse que sim senhor. Newton,que tinha lá?!
De enxada na mão, é quase certo que o novo homem não vai descobrir outra lei da gravitação universal. Mas vai de certeza descobrir o sofrimento, e isso, cá no meu entender, chega.

Vila Nova, 7 de Outubro de 1936 — Aqui na minha frente a folha branca do papel, à espera; dentro de mim esta angústia, à espera: e nada escrevo. A vida não é para se escrever. A vida — esta intimidade profunda, este ser sem remédio, esta noite de pesadelo que nem se chega a saber ao certo porque foi assim — é para se viver, não é para se fazer dela literatura.

Miguel Torga, Excertos de Diário, volumes I a IV.

S. Martinho de Anta, 22 de Março de 1978 — A feira. O espelho local onde se reflecte a perdição do mundo. Acabou o artesanato, a expressão singular da actividade humana. Nem um barro modelado, nem uma manta tecida à mão, nem um ferro forjado. Plástico a todos os níveis. E o mais trágico é que ninguém dá por isso. Ninguém parece lembrar-se sequer do latoeiro, do cesteiro ou do tanoeiro, que ainda há pouco eram presenças sacramentais nos pontos privilegiados do largo, à frente do mostruário das suas obras manufacturadas. Montes e montes de produtos incaracterísticos, feitos em série, enfartam agora os compradores. Nem escolha possível, nem gosto possível, nem objecção possível.
— Não é sola...
— Faz as vezes...
O tempo é outro, as solicitações são outras, as mentalidades são outras. Até a angústia mudou, pois que mudou a relação do homem com as coisas.
Um risco abstracto basta agora à exactidão do nosso perfil.

Miguel Torga, Excertos de Diário, volumes XIII a XVI

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