quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Crónica da Quaresma


A seguir ao Carnaval vinha o período medonho da Quaresma. Eu era menino de coro e apavorava-me a igreja cheia de ecos, as imagens aterradoras dos santos, as chamas das velas inclinando-se a tremer quando uma porta se abria, a solenidade, o luto, os jejuns, o peixe à sexta-feira a olhar-me do prato com a sua órbita branca como se também a ele judeus muito maus houvessem crucificado num calvário de grelos e batatas cozidas. Achava que Nosso Senhor Jesus Cristo devia ter morrido assim, às mãos não de Pilatos mas da cozinheira, escamado e a ferver numa panela cruel, que era a Nosso Senhor Jesus Cristo que eu tirava as espinhas e acompanhava a azeite, evitando fitar aquele olho redondo de supliciado culpando-me entre hortaliças da sua morte injusta. 

Antunes, António Lobo, Livro de Crónicas, Crónica da Quaresma

Contribuição de Manuel Costa

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