A seguir ao Carnaval vinha o período medonho da Quaresma. Eu era menino de
coro e apavorava-me a igreja cheia de ecos, as imagens aterradoras dos santos,
as chamas das velas inclinando-se a tremer quando uma porta se abria, a
solenidade, o luto, os jejuns, o peixe à sexta-feira a olhar-me do prato com a
sua órbita branca como se também a ele judeus muito maus houvessem crucificado
num calvário de grelos e batatas cozidas. Achava que Nosso Senhor Jesus Cristo
devia ter morrido assim, às mãos não de Pilatos mas da cozinheira, escamado e a
ferver numa panela cruel, que era a Nosso Senhor Jesus Cristo que eu tirava as
espinhas e acompanhava a azeite, evitando fitar aquele olho redondo de
supliciado culpando-me entre hortaliças da sua morte injusta.
Antunes, António Lobo, Livro de Crónicas, Crónica da Quaresma
Contribuição de Manuel Costa
Sem comentários:
Enviar um comentário