segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os Bichos, Miguel Torga

NERO

Em Nero, Miguel Torga, conta-nos a história de um cão, narrada por si próprio, que estando na sua última hora de vida, faz uma retrospectiva do que foi a sua infância, juventude e a vida adulta, tal e qual como se fosse uma pessoa. 



Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedido já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos, acompanhado pelo povo em peso… Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira


MORGADO

Morgado era um burro que pertencia a um moleiro e que foi vendido a um Almocreve por dezassete libras. 
O Burro tinha pelo almocreve uma grande afeição e transportava todas as cargas com alegria e dedicação, até que um dia foi maltratado pelo dono, que o abandonou à sua sorte, quando foi atacado por uma matilha de lobos. 

Mas apenas o almocreve desmontou, e num relâmpago lhe tirou os aparelhos, acabou por compreender que o ia abandonar ali, esfalfado, coberto de suor, indefeso, à fome do inimigo. Salvava a vida com a vida dele... E lamentava as suas dezassete libras!E, afinal, a manhã vinha a romper!... Só quando viu o dono a caminhar pela serra fora de albarda às costas - não se envergonhar! - e sentiu os dentes do primeiro lobo cravados no pescoço, é que reparou que a luz do dia começara a desenhar as coisas e a dar significação a tudo.

Extratos do Livro de Miguel Torga, Bichos, 5.ª edição, Coimbra  1954

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